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  • Milena Velloso

O povo de Orion  na Terra do Nunca


É fato público e notório Vale do Capão existem muitos mestres em assuntos tão diversos que vão de parto à atracamento de navio. Medicina natural, fitoterapia, florais e quiropraxia por aqui já foram superados pelo povo de Orion por tratamentos mais radicais como osteopatia, radioestesia, pedra obsidiana e a mais nova coqueluche do momento: o ThetaHealing. De acordo com um amigo morador, no Capão reproduzimos as mesmas simetrias e assimetrias de valores de qualquer sistemão, apenas mudamos os símbolos para elementos próprios do território. Os cursos de ThetaHealing e a viagem a Índia representam, em status local, o equivalente ao carro zero importado e à excursão pra Disney representam na cidade.

Apesar de nossos genuínos esforços de irmandade e união, aqui seguimos nos dividindo em grupos. Nativos e alternativos, iluminados e os “difíceis”, veganos e carnívoros e finalmente os “ Thetas” e “não Thetas” ( alusão àqueles que já conseguem ou se esforçam para vibrar na frequência Theta de energia). Muitas vezes o que difere um do outro é apenas o nosso próprio desejo de criar muros ao invés de pontes, de focar no que nos difere e nos separa ao invés de olharmos para o que nos assemelha e une. Não tenho a menor dúvida que temos todos muito mais em comum. Sting, lá atrás, já dizia “we are spirits in a material world”, ou seja, somos todos espíritos vivendo em um mundo material, e portanto temos muito mais motivos para nos congregarmos do que para nos segregarmos.

Nossas ilusões e desejos de iluminação individuais de nada servem se não nos colocarmos a serviço do outro, da comunidade e do trabalho árduo de contribuir para que todos, com igualdade e justiça, possam usufruir da mesma qualidade de vida para que possamos escolher vidas de qualidade e sentidos diversos com lastro mínimo garantido e construído coletivamente. A iluminação e a prosperidade não pode ser apartada da dimensão política, da transformação social. Ou será que escolhemos habitar esse mundo, com tantas riquezas e belezas, porém repleta de conflitos e ambiguidades, para simplesmente escolhermos estar convenientemente entre iguais. Se não formos capazes de apreciar a convivência com quem pensa, come, vive e se veste de formas diferentes das que escolhemos, estaremos criando vivendo em bolhas. Estas são reflexões que precisamos constantemente estar visitando para que não criemos espaços de intolerâncias nas nossas buscas, não importando se o caminho que perseguimos seja o do profano ou do sagrado.

Acredito que o nirvana, a felicidade, a realização pessoal ou o que quer que chamemos esse estado de iluminação, deveria ser colocado na escolha das boas lutas que a vida nos convida a travar . Primeiramente no empenho de evitar o julgamento e rótulos constantes, deste olhar para o mundo que cria divisas entre pessoas desejáveis e toleráveis, no esforço suave e gradual de caminhar na direção do outro, da nossa comunidade mais ampla , olhando e vigiando antes para dentro de nós mesmos sempre que nos desafiamos com algo do outro que não nos agrada. Mas é preciso observar com parcimônia os nossos aspectos mais sombrios. Nem toda escuridão pode ou deve ser iluminada, precisamos da noite para que o dia aconteça com toda sua plenitude e vigor. O verdadeiro exercício de gentileza é conceder ao outro o entendimento e compreensão que gostaríamos de obter de todos, com respeito e reverência para tudo que o outro nos apresenta e traz, tanto o que nos atrai quanto o que nos repudia.

O “outro” não pode ser compreendido a partir do meu sistema de crenças e desejos, ele têm o direito absoluto à sua própria integridade de costumes e valores. Uma comunidade que não se constrói a partir desses valores pode vir a se tornar perigosa, tirana. Um espaço de exclusões! A busca por um paraíso idílico e fictício, uma versão Capônica da Terra do Nunca do Peter Pan , onde os conflitos e ambiguidades são evitados a qualquer custo, não irá nos ajudar a construir uma comunidade coesa, cujo tecido social possa abraçar as muitas expressões e pulsões de suas tão diferentes gentes igualmente em diversidade e alteridade. Me arrisco a refletir sobre a preferência e uso constante aqui da palavra gratidão. Muitas vezes me parece uma forma de identificação excessiva com essa palavra, que inclusive não tenho nada contra, embora por vezes entenda o seu uso indiscriminado demais . Uma das possibilidades para tamanha identificação tenha a ver com a sua raiz semântica: graça. Receio que em busca desse estado de “graça”, algumas pessoas acabam negligenciando uma palavra muito bonita e poderosa da nossa linda língua portuguesa: obrigado.

Segundo ensina o professor português Antonio Nóvoa, a raiz semântica desta é a obrigação, responsabilidade, servidão. Então quando alguém faz ou me oferece algo e eu respondo com um obrigado, na verdade o que estou afirmando é que me sinto obrigado com aquela pessoa, que agora nós temos um vínculo, e que reconheço o que foi feito e me coloco a seu serviço. As intenções implícitas por trás de um simples obrigado são: estar a serviço de alguém , sentir-me obrigado e vinculado ao outro. Obrigado, é, portanto, uma palavra que nos transporta para uma dimensão acima da mera gratidão, significa que quando recebemos algo, além de ficar em estado de graça devemos nos colocar a serviço dessa pessoa, vinculados em obrigação a ela, o que na minha modesta opinião é uma escolha que define que tipo de relação queremos construir juntos. Por isso sempre contrario a tendência local e continuo usando meu bom e velho “obrigado”.

Com relação às nossas consistentes ou por vezes fugazes buscas por iluminação, convêm nos lembrar do exemplo do farol que guia os barcos a encontrar um porto e caminho em meio a noite escura. Ele gira intercalando luz e escuridão, com um intervalo de exatamente doze segundos. Houvera escolhido optar somente pela seu lado luz, não conseguiria o farol cumprir a sua missão de revelar o caminho, como lindamente proferiu o uruguaio Jorge Drexler: “no es la luz: lo que importa en verdad, son los 12 segundos de oscuridad”


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