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  • Aurelio Nunes

Cuba, Capão, lama e revolução


“A direita não respeita as regras. A única saída é pela revolução armada.” Enquanto tentava decifrar aquele portunhol ruim, eu me imaginava filmando o meu interlocutor, sentado à minha frente, em uma mesa de bar. Sabia que não seria possível, mesmo assim pedi. E obtive o previsível não como reposta, o que me impede de revelar seu nome e sua procedência, por óbvias razões de segurança.

Pablo, vamos chama-lo com esse nome fictício, não é mais um guerrilheiro oficialmente procurado pelo assassinato de oito militares em um malfadado atentado à bomba ao ditador que governou seu país (e que saiu ileso, diga-se de passagem). Recebeu um indulto presidencial em 2010 que o transformou de terrorista em “patriota” do dia para a noite. Está protegido pela lei, mas não se sente seguro o suficiente. Sabe que ainda hoje, mesmo passados mais de 30 anos da fuga para o Brasil, pode ser vítima de uma emboscada a qualquer momento. Nem mesmo os filhos, que vivem em São Paulo, conhecem seu paradeiro. Na Paulicéia, fez contato com exilados de movimentos revolucionários de toda a América Latina, que o levou a participar, entre outros momentos históricos, da intermediação para a libertação de reféns das Farc na Colômbia. Pablo também fez fortuna vendendo prata. A riqueza foi uma veste incômoda para alguém que lutara tão fervorosamente pelo comunismo. Dividiu a herança entre os filhos e mudou-se para a Bahia, “atrás de uma vida mais simples”. Morou em Itacaré e Morro de São Paulo, antes de aportar no Capão, há 20 anos. É nessa parte da história que aquela figura de cabelos grisalhos, sentada à minha frente, começa a fazer sentido. Meu entrevistado diz que lambe as botas dos antigos habitantes do Capão, gente que batalhou muito pra superar as carências típicas de um lugar outrora tão vulnerável ao isolamento por causa das chuvas ou condenado à penúria por conta da estiagem. Mas não tem a mesma deferência para com as novas gerações, segundo ele mal acostumadas aos mimos que chegaram a reboque do boom do turismo, como as motos, os celulares e as drogas.

Foi exatamente essa sensação de vazio existencial da juventude que o levou à depressão em sua última viagem à terra natal, há quatro anos. Nosso herói não conseguiu se reconhecer nas calles: onde outrora testemunhara tombar em combate os antigos companheiros de luta, só conseguira enxergar jovens preocupados em satisfazer prazeres consumistas. Como um bom revolucionário, Pablo é muito afeito a teorias conspiratórias. Desistiu da internet depois que seu e-mail desapareceu de forma misteriosa. A TV ele não assiste desde que o Brasil perdeu a final da Copa de 1998. Os 3 a 0 para a França foram demais para o coração de quem se encantara com o Brasil muito antes do exílio, ainda na infância, assistindo os jogos que o Santos de Pelé fizera em excursão ao seu país. Mimos que o pai rico fizera a um filho ameaçado de morte aos 9 anos de idade por um câncer linfático que viria a superar. O mesmo pai cuja casa abandonara ainda na adolescência e com quem não conseguia sequer conversar sobre política. O pai que não pôde velar em 2003, quando ainda vivia na clandestinidade, já no Capão, e para quem o único e último desesperado gesto de aproximação que lhe restou lançar foi a caminhada a pé até Lençóis para usar o telefone público de onde podia fazer ligações internacionais gratuitas e se consolar com o restante da família. “Ele era um capitalista, eu um comunista, mas nós nos respeitávamos. Quando cai na clandestinidade, foi ele que protegeu a minha filha”, lembra, de olhos marejados.

No Capão, Pablo leva a vida simples que pediu a Marx, mas é um pouco mais solitário que gostaria. A conversa iniciada pela manhã avança tarde adentro e eu, mesmo empolgado em conhecê-lo, sinto que seu desapontamento é ainda maior que o meu quando anuncio que preciso interromper a conversa para voltar à realidade.

Ao contrário de meu entrevistado, parto com a sensação de que estou cada vez menos isolado. Na véspera do meu encontro inusitado com Pablo, havia encontrado Paulo, na escola Vagalume, de minha caçula Marina. Paulo é um advogado gaúcho recém-chegado ao Capão que viveu seis meses em Cuba como parte de sua tese de doutorado sobre Direitos Humanos.

No dia seguinte a Pablo, mais um contato promissor, este com Rafael na festa do Brilho do Cristal, a escola de minha Ananda e seu Ariel. Rafael é fotógrafo e cineasta. Fez um documentário sobre os Malucos da BR por meio de financiamento coletivo. Seu último trabalho foi acompanhar durante quatro meses os desdobramentos do criminoso vazamento de lama Barragem que a Samarco mantinha em Bento Rodrigues.

Durante todo esse período em que o País foi sacudido por manifestações por aqui, pelo menos que eu tenha notícia, não bateram panela pra derrubar a presidente, tampouco se ouviram protestos contra a sua queda. É esse silêncio que produz a impressão – muitas vezes verdadeira, noutras falsa – de distanciamento, anestesiamento e alienação.

Para mim se não deixa de ser significativo, também não chega a ser espantoso encontrar em três dias seguidos pessoas tão engajadas politicamente quanto Pablo, Paulo e Rafael. E não à toa, no exato momento em que escolhi retomar a leitura da biografia de Marighella. Primeiro porque que se existe algo de mágico nessa vida é esse campo magnético que nos atrai para perto daqueles cujas crenças e valores mais se assemelham aos nossos. E essa lei vale em qualquer canto, até mesmo nesse fim de estrada, de linha e de mundo que escolhi viver. Segundo porque se o Capão é mesmo um refúgio, não haveria razão para não abrigar entre os vários tipos de refugiados, marginais e clandestinos, aqueles que voluntária ou compulsoriamente exilaram-se por razões políticas. Para Pablo, Paulo e Rafael, o Capão é um refúgio, um lugar distante de onde se travam as grandes batalhas ideológicas. Para mim, este é um ponto de convergência de gente de toda parte que não se contenta em passar pela vida sem ‘experiencia-la.’ Gente que, antes de pregar a revolução, precisa pegar em armas; antes de falar sobre os Direitos Humanos em Cuba, precisa viver em Cuba; antes de defender os direitos das populações ribeirinhas atingidas pela lama, precisa pisar na lama.

Indiquei Paulo para ministrar uma palestra na escola Municipal de Caeté-Açu, de meu primogênito Luan. Tendo a fazer o mesmo para Pablo e Rafael. Entendo que se existe mesmo esse vazio de sentido da adolescência contemporânea é pela falta de referências como as de meus novos amigos caponenses. A segunda medida será apresenta-los uns aos outros. Se daí em diante ficaremos por aqui mesmo, cada qual no seu canto, ou se juntos vamos partir pra Cuba, pra revolução ou pra lama, só o tempo dirá.


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