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  • Milena Velloso

Eldorado vai ao Farol, mas seu grito por justiça é silenciado em Brasília


Há muros que não enxergamos, mesmo quando pensamos estar lutando para derrubá-los. No último domingo, 17 de abril, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) organizou uma vigília anti-golpe no portal turístico da cidade de Salvador: o Farol da Barra, um dos metros quadrados mais caros da cidade, reduto da elite e das políticas de requalificação de espaço público feitas pelos Carlismos de ontem e hoje para “gentrificar” do espaço gente como eles. Não foi uma simples coincidência: exatamente 20 anos atrás, 21 trabalhadores rurais foram assassinados no episódio que ficou conhecido como o Massacre de Eldorado dos Carajás e cuja impunidade foi corroborada pelo ataque covarde promovido há duas semanas pela PM e por seguranças da Empresa Araupel no Paraná, onde foram assassinados os trabalhadores rurais, Vilmar Bordim, de 44 anos, casado, pai de três filhos e Leomar Bhorbak, de 25 anos, que deixou a esposa grávida de nove meses. Infelizmente isso não saiu no JN.


O motivo pelo qual escolheram esse local: mostrar para a elite que haverá luta, caso haja golpe, que do lado do muro bolivariano existe, embora não ecoe nos maiores veículos de imprensa, muito mais números e forças do que o exército Bolsonariano que se postou nesse último domingo no Jardim de Alah. Por quais motivos continuamos a ocupar somente os espaços da orla ou centro é algo que me escapa, poderíamos por exemplo ter feito um ato na Liberdade ou mesmo em Cajazeiras, onde a força da periferia mostraria, enfim, sua cara e o espírito de luta que precisa travar diariamente por espaço na sociedade.


Eles chegavam desde sábado e montaram em torno de 400 barracas. Eu só desembarquei no domingo, pela manhã, e era tudo muito digno: as expressões, as palavras ditas e caladas, a gentileza no gesto e no olhar, em flagrante contraste com os apelos feitos nas redes sociais que pediam a todos que não saíssem de casa, para não serem assaltados pela corja de ladrões violentos que acabara de se apossar da área. A precariedade das instalações, a comida servida em bacias de plástico, desmentia os brados histéricos que denunciavam a farra do dinheiro público esbanjado com o movimento social. Sim, falava-se, ou teclava-se dos trabalhadores rurais sem terra do país como se fossem eles os ladrões e a eles que devêssemos ‘Temer’. Parece-me que há muito perdemos completamente a compostura e a vergonha daquilo que abertamente resolvemos apoiar ou combater! Desde então fiquei com essa perturbação, um incômodo que já aprendi a acatar quando chega. Não há nada a fazer se não me dedicar a esse intruso que me atropela.


A despeito desse incômodo, foi um domingo de luta e alegria, encontro com amigos, antigos parceiros de trabalho, uma cervejinha aqui outra acolá. Estávamos todos muito nervosos, mas também muito efusivos e eufóricos com a hipótese de enfim darmos um basta nas políticas persecutórias e de criminalização que se apossaram do nosso país desde as últimas eleições, infelizmente com amplo apoio de uma classe média adesista e de uma imprensa criminosa e classista.

Muitos falavam que já estavam cansados, eu com certeza, afirmei veementemente que queria aposentar aquela camisa, afinal nem me identificava muito com o número estampado atrás, o 13, símbolo de um partido que deixou muito a desejar para nós que continuamos defendendo, sobretudo e apesar de hoje, as bandeiras do pensamento socialista.


Ao deixar o Farol naquela noite, senti um verniz de vergonha e culpa pela minha condição de usuária do tão desejado boné do MST. Em pouco mais de 20 minutos, encharcada pela chuva torrencial que caiu, muito provavelmente para lavar o sangue e vergonha daqueles que em Brasília roubavam a nossa democracia com palavras de ódio, eu estaria em casa, acolhida por todo conforto que esse país sempre proporcionou aos bem nascidos e aos seus herdeiros naturais.

Mas eles, os trabalhadores rurais do MST, continuariam lá acampados, com seus bonés, bandeiras e dores, até porque não se deixa nunca de ser um MST, até mesmo em um governo que só abriu a mão para conceder uma ínfima parte do que se garantiu que se daria. Um governo que empossou Kátia Abreu para a pasta do agronegócio, algoz maior do movimento. Porém, quando isso foi a única coisa que se conseguiu em um cenário de mais de 30 anos de história e luta por terra e comida, você defende a foice e lágrimas, debaixo de chuva e sol esse governo vesgo e mesquinho, como essa e muitas outras minorias o fizeram, a exemplo do Enegrecer e o Levante Popular, compostos por jovens negros da periferia, o alvo preferencial do genocídio racista do Estado brasileiro.

Nos semblantes dos quase 1200 trabalhadores rurais, era visível o medo e angústia pela falta de políticas públicas que viriam, caso o golpe se concretizasse. Com certeza estamos todos cansados dos uniformes que usamos, dos muros que construímos e dos muros que não enxergamos, mas nem todos os vestem com o mesmo nível de conforto e adesão, outros vivem seu uniforme como expressão de identidade, mas depois podem despir-se dos mesmos e retomarem o conforto do seu “status quo”! Mas para muitos ali, o viver tem sido vestir aquele boné e toda luta e precariedade ao qual aquele símbolo faz alusão.


Pensando um pouco melhor sobre tudo isso, já não me reconheço tão confortável na foto tirada por um amigo, onde ouso usurpar delirantemente a luta de outros, como se pudesse ser minha, mesmo por algumas horas. Ao passar por aquela fileira de olhares abatidos buscando proteção sob a marquise de um prédio situado em frente ao luxo do melhor cartão postal da cidade o meu sentimento é de constrangimento e mais próxima das palavras escritas no meu cartaz que do boné que ostentava na cabeça. A minha luta sempre se deu no campo do discurso, das forças simbólicas por trás dos movimentos, e só. Mas para a grande maioria, é uma questão de comida, de dignidade, de vida e de morte!










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