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  • Milena Velloso

Mandu, o cozinheiro fiel


Recebi de presente nesse carnaval de Cris Glasner o livro Desacontecimentos, de Eliane Brun. Além de um bálsamo para aliviar o incômodo de estar alijada de viver a fantasia dionisíaca do Carnaval de Salvador, foi um reencontro maravilhoso com o mundo dos livros. De quebra, ganhei de presente, de outra amiga Cris, um par de lentes novas para os meus óculos, sem o qual me seria impossível ler qualquer coisa que tivesse fonte menor que 16 em Times New Roman, razão de meu recente apartamento do mundo das letras.

O presente foi além de leitura, tornando-se durantes os cinco dias de Carnaval um companheiro fiel das noites de uma irritante insônia provocada pelo desejo pulsante e resoluto de não estar aqui, mas lá, acompanhando as pipocas de Moraes Moreira, Baiana System ou de qualquer outro trio sem cordas que passasse pela avenida ecoando “eu sou o carnaval em cada esquina, do seu co-ra-ção!” Degustei pacientemente cada página como um consolo para suprir minha ausência da companhia dos amigos foliões Mor do carnaval da Bahia Bred e Frenda, parceiros desses momentos de alegria eletrizantes, muita purpurina e esculhambação.

Pois que quando fui agradecer o presente ouvi da primeira Cris que a leitura consumiria no máximo uma tarde, que seria ‘um tapa’. Não consegui. Cada pequena crônica que lia era acompanhada de um misto de delícia e dor, pois sentia as páginas da mão direita passando para a esquerda num sinal inequívoco de que o livro vagarosamente ia se acabando pra mim. Retardei ao máximo este processo, posto que somente hoje, consegui terminá-lo, sentada na varanda com a pequena Nila ao colo, que muito dengosa estava ao se recuperar do seu primeiro cio de menina cadela mulher.

É Inevitável pensar em como certas histórias nos tocam, algumas de forma muita profunda. Para a autora foi o encontro inusitado com Lili, a mulher da livraria que fazia de conta que não via quando Eliane Brum devorava o conteúdo das prateleiras sem pagar. Para mim foi Mandu, o cozinheiro de um pequeno restaurante em Brooklyn onde morei durante a primeira metade dos anos 1990. Fui uma pessoa de classe média a vida inteira, me faltou muito pouco ou quase nada na vida e convivi desde muito cedo com pessoas cujas coisas que faltavam eram menos ainda. Mandu, por outro lado, era egípcio, muçulmano, natural do Cairo e há 15 anos juntava dinheiro para trazer a família para viver nos Estados Unidos. Quando deixou sua terra mãe a mulher estava grávida. Conseguiu retornar uma única vez para conhecer a filha e até aquela data em que nossas vidas se interpelavam diariamente na cozinha de Lotsky, proprietário do Bellamelio’s, nunca mais Mandu pôde visitá-las, pois era primordial que cada centavo fosse economizado no intuito maior de comprar um imóvel e garantir o visto americano para mulher e filha.

Quando Mandu me revelou sua história eu duvidei, pois me parecia inverossímil. Precisei de muitos detalhes para poder compreender como exatamente aquilo teria sido possível. A resistência e resiliência diante de uma realidade que se fazia restritiva a tal ponto era algo que nunca até aquele momento havia conhecido tão de perto. Quinze anos era tempo demais para qualquer um esperar por qualquer outro que fosse. Amar alguém à distância e viver esse amor de forma tão sacrificada e dolorosa me soava inacreditável.

Mandu me disse uma vez que cada minuto longe da sua família fazia com as amassem ainda mais verdadeiramente pois ele se mantinha firme no propósito de cumprir a promessa que havia feito 15 anos antes quando tinha ficado frente a frente com sua filha pela primeira e última vez. Para cumprir essa difícil promessa, foi preciso viver durante boa parte desse tempo em um apartamento com mais 19 pessoas, a maior parte imigrantes, com histórias igualmente dolorosas, muitos sonhos de prosperidade e famílias inteiras deixadas para trás. Tão desafiador quanto esperar por uma família quinze anos era o sisitema de rodízio que ele e seus companheiros faziam para viver todos sob o mesmo teto em um sistema de rodízio, poplaurmente conhecido como "Sistema da cama quente".

Um ano depois, quando já não trabalhava mais no Bellamelio”s, Mandu traria enfim a sua família para a casa que finalmente conseguira comprar. Era o presente de debutante que daria para aquela por quem ele só conhecia o rosto de bebê. Fui convidada a conhecer a casa que Mandu comprara no Brooklyn, em Flatbush, na época ainda um bairro de imigrantes pobres – soube recentemente que hoje em dia, após o processo de gentrificação que Nova Iorque experimentou nos últimos 20 anos, ficou na moda. Bom para Mandu e sua família, se é que ainda estão por lá.

Mandu foi para mim o que Lili, a balconista da livraria representou para Eliane Brun. Ambos seguiram suas vidas completamente alheios à importância que tiveram para nós, inconscientes da forma com que tão profunda e significativamente nos tocaram. Naqueles dias em que trabalhei com Mandu na cozinha do Bellamelio’s, ao ouvir cada capítulo de sua heroica novela, eu experimentei um segundo nascimento. Um mundo inteiro se desvelava diante de mim, não mais como fábula, e sim como possibilidade. Uma vida repleta de sentido e busca. Uma vida a ser construída e não herdada.

Assim, por ele e muitos outros depois me tornei Milena, sem sobrenomes, nem referências. Tinha um endereço, um telefone e assim em apresentava. Aonde havia estudado, círculos de amizades, a minha própria família se desgrudaram de mim, de meu rosto e ele ficou nu, em carne viva, pronto para ser reconstruído novamente. Tenho uma foto linda com Mandu, perdida em alguma caixa guardada, esperando por um cômodo que se demora a chegar. Nela eu trajo um lindo chapéu com girassóis e ele o seu uniforme de cozinheiro com óculos enormes de grau , tipo ray-ban. Mandu, sua esposa e filha que nunca conheci ou sequer soube os nomes, me deram isso.


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