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  • Milena Velloso

Lu, Nana, Dum e quem mais chegar. Um coração de mel de melão


Ficamos dez dias sem computador, durante esse período lidamos com uma sinusite, dor de dente e um incêndio criminoso nos Gerais do Vieira e em Andaraí que só foi contido pelos brigadistas um dia antes do início do festival de jazz , que no seu segundo e último dia foi aberto com Luizinho do Jêje e quinze instrumentos percussivos, o encerramento ficou por conta de Joyce Moreno, que juntos na sexta já haviam arrasado com oficinas e pockets no circo.

Amo música boa, atravesso muitos estilos mas não sou uma boa entendedora, transito bem no cenário punk rock dos anos 90 mas em matéria de bossa nova e MPB, gosto muito, ouço mais ainda, mas entendo nada de nada. Pois que Joyce foi a convidada especial do festival esse ano e não fazia a menor ideia de quem ela fosse, isso não me surpreendeu muito, mas quando Lelo, que entende bastante do assunto, me disse também que não sabia quem era, que conhecia uma Joyce, mas não Moreno??? me senti perdoada e pensei: vai ver que é uma jazzista famosa de um selo independente bem pequeno, dessas que não paga jabá pra rádio nem tevê e por isso eu e muita gente fora do mercado musical não sabe quem é também.

Descobri que isso tudo era verdade, do jabá, e outras coisas mais, e que também é uma figura incrível, com uma trajetória belíssima e contribuição maior ainda para o cenário do que ela mesma denominou MCB - Música Criativa Brasileira. Me senti pequenina e mal informada, porém grata pelo encontro inusitado proporcionado pelo meu amigo e vizinho circo e por Rowney Scott . Uma das coisas ainda maravilhosas sobre viver no Capão são esses encontros surpreendentes que o Vale proporciona, um estranho na rua, uma conversa fiada e daqui a pouco uma parceria é firmada, um oportunidade bacana surge ou simplesmente uma boa prosa inteligente acontece. O que é típico de lugares onde as pessoas escolheram estar por diferentes buscas e sentidos no seu viver.

No festival então aconteceu aqui do lado, uma tarde, pouco mais de 60 pessoas na plateia, eu na primeira fileira e aquela jovem senhora compartilhando seus segredos de compositora, até então uma estranha, tão longe no tempo, tão perto de mim, uma música nos unia, nem sei o título e não quis procurar no google para não enganar você leitor, de que pelo menos isso eu sabia sobre a famosa estranha. A letra conhecia toda, de cabo a rabo, do que ela fala mais ainda, três vezes e ainda sinto de uma forma muito profunda a força do seu refrão: “e quem mais chegar “.

Estava registrando as oficinas , essa era a minha função ali durante o dia inteiro. Luizinho e sua trupe arrasaram na percussão com música de terreiro das nações Jêje e Angola e finalmente Joyce chega, não a reconheci, música vai, música vem, conversa boa e muitas histórias incríveis, a essa altura já tinha percebido o tamanho da minha ignorância, ela tocava e cantava brilhantemente, uma voz impecável e aí , quase no final , ela chega numa história sobre uma música de um festival e começou a dedilhar os primeiros acordes : “um coração de mel de melão, de sim e de não, é feito um bichinho no sol de manhã, novelo de lá, no ventre da mãe , bate um coração de Clara, Ana e quem mais chegar”.

Nos primeiros dois acordes reconheci a música e me vi imediatamente transportada no tempo , 30 anos atrás, adolescente , desejando ser uma dia mãe de muitos filhos, sem nem arriscar pensar se me casaria ou não, se amaria perdidamente um homem ou não, mas filhos? Sim. E mais de um, de dois. Cinco! Esse era o número mágico com certeza, com toda certeza que uma menina de quatorze anos pode ter. Aquela música encontrou na minha alma um lugar, um espaço de mãe que sempre existiu, antes mesmo de eu me saber filha, gente e mãe.

A mão tremeu, as pernas também, parei de filmar, ousei cantarolar enquanto ela dedilhava ainda os primeiros acordes, fomos eu e Maurício Assunção ,os únicos. Ela deu a permissão quando percebeu, com reverência a emoção e mistério da nossa ousadia de nos arriscarmos a cantar, antes mesmo dela a sua música e roubá-la um pouco na sua autoria. Durou pouco mais de 3 minutos, lá, no circo, pois aqui a música permanece comigo desde então e ontem pude escutá-la ao vivo novamente no palco principal da Vila. Um mistura de antecipação e receio se ocupou de mim o dia todo, me arrebatando até o momento que ela entrou no palco. Joyce , com sua saia preta e blusa laranja , um banquinho e um violão: A imagem emblemática desse momento e dilema íntimos que me interpelam agora mais do que nunca. Um coração de sim e de não, no ventre da mãe bate um coração de Lu, Nana, Dum e quem mais chegar. Água, terra, fogo e ar. O fogo no parque apagou no dia da chegada dela no Vale, o meu fogo de mãe que sempre deseja por mais chegadas talvez nunca se apague.


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